sexta-feira, 12 de abril de 2013

A escada e a amnésia momentânea.

Havia uma escada no caminho
No caminho havia uma escada.

Uma amiga contou essa semana sobre sua primeira amnésia. Conheço a sensação e não é nada engraçada.  Passei por algo parecido alguns anos atrás e só de pensar nisso, me sobe um sentimento ruim. Sinto-me mal e sufocada. Lembrando agora não parece ter sido grande coisa, mas naquele momento foi.  Foi tanto que acabou por modificar em muito minha vida. Tomei decisões e fiz escolhas que antes não estavam no meus planos originais. Fiz o que era preciso, faria novamente. Faria qualquer coisa para não passar por aquilo de novo. 
Pensa em alguém que fala pelos cotovelos - ok, tem dia que não falo nem oi pras paredes, mas em geral sou falante, comunicativa, 100% social, et cetera - enfim uma pessoa que é verborrágica por natureza e que digamos, tem um dom natural para falar e escrever. E que adora ler!
Naquele tempoooooooooooooooo a sem noção aqui tinha deixado o trabalho, mudado de cidade, mudado de casa novamente, tido a baby one (então com menos de um ano), e como se não bastasse... havia se metido em duas pós-graduações, uma à distância e outra presencial  e num cursinho preparatório para concursos. Na minha cabeça estava à toa na vida e precisava ocupar minha mente com algo útil e produtivo.Tudo ao mesmo tempo e agoraaaaaaaaaaaaaah! Maridex dizia que eu tinha (tenho?) essa mania de abraçar o mundo com as pernas (ãh?) e não sabia (sei) dimensionar meus limites. Realmente nunca fui boa nisso de entender limites. Nunca entendi que tinha limites. Tinha tido uma anemia profunda e desmaiado no tempo da faculdade por excesso de atividades... mas a lição, pelo visto, não tinha sido assimilada. Como havia deixado meu trabalho, precisava estudar para justificar-me perante os outros.  Precisava justificar minha decisão principalmente para mim. Precisava acreditar que tinha feito a escolha certa. Ia correndo de um lado para o outro fazendo de tudo um pouco e a casa só não caía porque sempre tive a sorte de ter boas empregadas domésticas.
O dia em geral começava às 5  e pouco da manhã com pimpolha acordando e querendo ir para a creche. Isso depois de ter amamentado ela de duas em duas horas durante toda a noite anterior, e na anterior e na anterior... Nem eram seis da manhã e já estava dando voltas de carro (o maternal ficava na esquina praticamente), porque ela queria-pq-queria ir pra escolinha. Baby one amava a escolinha, agarrava a mochila e ia engatinhando pra a porta pedindo para irmos logo. Só que eles só abriam a escola às sete e quinze. Advinha quem era sempre a primeira a chegar? Dali seguia para o cursinho preparatório,  muito bom por sinal. Voltava ao meio dia,  pegava a baby na creche e dependendo da boa vontade (dela) estudava alguma coisa. Só mães de primeira viagem se aventuram a fazer duas pós e cursinho para concurso com um bebê de oito meses que ainda mama, e que não dorme o famoso soninho da tarde, e que... era só um bebê afinal de contas! É... hoje sei que não tinha como dar certo... De noite e aos sábados pela manhã lá ia a irresponsável aqui pra pós graduação. Ainda não sei como consegui concluir a pós. A verdade é que não sei como consegui es-cre-ver o trabalho de conclusão da pós. 
O caso é que em determinada manhã estava lá no cursinho quando alguém - novato perdido -  vem e me faz uma pergunta fácil... sobre onde ficava a sala X, por exemplo.  Na boa fui responder, aí travou tudo... eu sabia onde ficava a sala, sabia que era só subir a escada que estava na minha frente. Só que a palavra - escada - sumiu completamente do meu vocabulário. Olhava para ela... e não sabia dizer o nome es-ca-da. Sei que esquecer palavras é normal, acontece. Mas ali, naquele momento me baixou um desespero sem fim, apontei a direção e saí apressada para a minha própria sala. Foi quando o branco total começou... não sabia qual era a minha sala, não sabia o que estava fazendo ali. Não sabia que lugar era aquele e porquê estava ali. O desespero foi tão grande que saí do lugar, queria ir para casa. Saindo do curso tem uma praça, não era longe da minha casa, se quisesse poderia ir a pé - tinha o costume a pé. Gosto de andar. Mas o nevoeiro branco parecia ir tomando conta de mim a cada segundo. Ao chegar na praça não sabia mais onde estava nem que direção tomar. Não me lembrava sequer do meu endereço, não podia perguntar para ninguém como chegar na minha própria casa. Abri minha bolsa e fui procurar meus documentos. Primeiro fui procurar se tinha meu endereço, telefone, qualquer coisa, anotado em algum lugar. Nada. Lembrar do telefone de qualquer outra pessoa era impossível. Do nada não consegui lembrar o nome de ninguém. Não sabia quem chamar. Peguei minha carteira de identidade e fiquei lendo meu nome para não esquecer. A ideia de esquecer meu próprio nome me fez entrar em pânico total. Fiquei segurando a carteira e repetindo mentalmente... meu nome é tal, me chamo tal, sou a fulana de tal. Quando me dei conta as letras não faziam mais sentido, não conseguia ler meu  nome. Pânico, não sabia ler! Não conseguia ler!!! Comecei a olhar os cadernos que tinha nas mãos e não entendia o que estava escrito ali, o pior era ter um resquício de memória de que eu mesma tinha anotado aquilo e que segundos atrás poderia dar até aula sobre o tema... o poder discricionário do estado. Direito constitucional? Eu sambava sobre isso até uma hora antes. Era como se estivessem passando uma borracha na minha mente, a cada minuto perdia algo que antes dominava com facilidade. Achei uma caderneta de telefones na bolsa, mas os nomes e números ali não significavam nada. Olhei para o orelhão (nada de celular naquele tempo, ok?) e não sabia para onde ligar, pior não sabia como ligar! Não sabia como fazer uma ligação telefônica... o que era pior do que não saber para onde ligar, já que não lembrava o telefone de ninguém. Logo em seguida o orelhão deixou de fazer sentido, não sabia mais para quê ele servia ou o motivo pelo qual queria usá-lo.  Não sei exatamente o que aconteceu. Devo ter chorado, choro fácil. Lembro de ter sentado num banco por um tempo que não sei definir, pareceram horas... Chorei. Tinha medo de falar com alguém. Não sabia o que dizer, não sabia o que responder. Se me perguntassem algo diria o quê? Meu nome é tal, está escrito nesse papel mas não sei ler mais nem sei o que estou fazendo aqui. Não sei quem sou, não me lembro quem sou! Só recordar daquele dia me faz chorar de novo, mesmo agora, tantos anos depois. Do mesmo modo que o branco veio, do nada, de repente ele foi passando.. como uma neblina levantando... Lembrei que estava de carro, cheguei a encontrar ele estacionado ali perto. Tive medo de dirigir e decidi voltar para casa a pé, já me lembrava onde morava e como chegar lá. No fim do dia consegui voltar e buscar o automóvel. 
Fui obrigada a reconhecer que tinha ido além do que podia, que era preciso respeitar alguns limites. Que tinha limites! Precisava abrir mão de algo, dar um tempo, estabelecer prioridades. Minha família, minha filha vinha em primeiro lugar, sem dúvida nenhuma. Sabe o que é você só lembrar que tem uma filha depois de olhar para foto dela num porta retrato? Não lembrar que tinha família, pais, marido, filha ou o nome deles? Fiquei assombrada quando me dei conta que tinha uma bebê. Corri para buscá-la na escola. Não queria nunca mais sentir aquele vazio, aquele branco sem fim. Não é fácil perder sua identidade, ainda que por instantes.
Abandonei a pós a distância. Terminei a outra  pós não sei como... realmente não sei como concluí o trabalho final. Continuava a ir no cursinho simplesmente porque achava que tinha que ir... a verdade é que havia desistido de estudar, ainda que não tivesse consciência total disso. Realmente só voltava para lá para  ter certeza de que não tinha esquecido tudo.  Era uma prova de coragem entrar naquele lugar todo dia. Algo como quando se cai de um cavalo, é preciso montar imediatamente para não ficar com medo. Já havia caído do cavalo (real) e meu primeiro impulso foi subir na sela novamente, sabia que era preciso enfrentar aquilo. Voltar para o curso no dia seguinte foi como montar no cavalo novamente, era preciso dominar o pânico. Era preciso encarar a escada. Até hoje essa escada me causa pesadelos... vejo ela se esfacelando em milhões de pedacinhos... cada um com a forma de uma letra, número, signo... e todos eles caindo sobre mim, enquanto tento buscar o sentido, mas não consigo ler...  termino soterrada. Mal olhava para a escada quando entrava no curso, ela me dava calafrios. Sentia-me aliviada quando conseguia atravessar aquele muro amarelo sem ter um novo  "branco". Só faltava soltar fogos de artifícios quando entendia o que o professor falava, principalmente quando me lembrava de já saber do que ele estava falando. Minha memória de conhecimentos profissionais voltava aos poucos, devagarinho. Durante dias assistia cada maldita aula apenas para ter certeza de que ainda sabia tudo aquilo, que não havia nenhum dano permanente. Deixei de sentar na primeira fileira, deixei de perguntar, responder, conversar, discutir, debater, estudar em grupo... nunca mais!... como correr o risco?...  tinha medo de não conseguir coordenar uma frase inteligível. Fui me sentar lá atrás... desisti de forçar a situação. 
Hoje sei que deveria ter procurado ajuda, um médico, era stress, era cansaço mental, físico, emocional. Deveria ter falado sobre aquilo, mas o medo e a vergonha eram maiores. Para contar para os outros era preciso admitir para mim mesma que aquilo havia acontecido.  Não queria falar sobre aquele dia, nunca falei. Para ninguém. Até hoje a situação me causa um certo espanto, é meio ridículo tudo que aconteceu. Não faz sentido. O medo de passar por isso novamente era maior do que tudo. Falar sobre isso com qualquer pessoa era reviver aquele dia. Não, obrigada. Cada um tem seus pontos de apoio, minha segurança pessoal sempre veio da minha capacidade intelectual e profissional. Aquela amnésia momentânea mexeu comigo e alterou por muito tempo minha percepção de mim mesma. Não me arrependo de ter dado um tempo, de ter tirado o pé do acelerador. Foi necessário, fiz o que era preciso. Nunca mais tive outro branco e agradeço sempre por isso! Perder sua memória, mesmo que por míseros minutos, esquecer quem se é...  não tem graça nenhuma.
Aquela escada, a névoa branca apagando tudo e aquele dia afetaram mais minha vida do que poderia imaginar. Tem coisas que não se esquece... e esquecer tudo a ponto de não lembrar quem se é é uma delas.

5 comentários:

  1. Nossa,Gê,isso foi forte,marcou mesmo a tua vida..que bom que conseguiste desacelerar..

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  2. Olha, se o meu branco foi curtinho e me deu um desespero... eu imagino que você tenha ficado mil vezes pior do que eu. E realmente eu fiquei com medo de ter ficado alguma sequela na minha memória também!!!! Você falando ai me fez lembrar da sensação (muito melhor descrita por você do que por mim)...
    É, a coisa não é brincadeira não. Melhor tomar cuidado mesmo!!!

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  3. PS* Adorei essa escada da foto! quero uma na minha casa assim...

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  4. Em Outubro de 2013 aconteceu algo semelhante comigo, estava na sala do meu apto e de uma hora pra outra não lembrava qual era o dia ao olhar pela janela tb não lembrava em qual cidade estava e pq estava ali. me bateu desespero e não contei quanto tempo fiquei assim. Te entendo é uma sensação desesperadora.

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    1. Espero que não tenha se repetido mais com vc, realmente bate um desespero.

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